avatares

Quando sei que vens, varro muito bem o terraço. Sabes que quero muito que venhas e que gosto de varrer mais nesses dias. Varro, varro, varro como se me varresse também e me despisse e cumprisse dessa forma um ritual. Coloco a mesa de ferro torneado ao centro e sobre ela uma toalha de linho. Disponho do serviço chinês de que nunca faço uso. Encosto o cadeirão de verga a um canto e carrego-o com toda a tralha que encontro, compactando-a e cobrindo-a com um oleado. O minimalismo atraí-me, ainda que a preguiça me domine. Ponho o tapete azul na entrada porque é grande e absorve, e gosto de azul e tu gostas de azul – a cor da aura, a cor da luz, a cor do mar, a cor do amor. Geralmente, preparo um chá e faço bolinhos – coisas simples que sei que gostas, ainda que acabem sempre por saber a tudo menos àquilo que é suposto.

Pouco importa. Pouco importa isto, pouco importa tudo quando importamos nós.

Temos uma daquelas relações indefinidas – que não são, nem deixam de ser. Não somos amantes, não somos amigos, não somos nem mais nem menos do que isso. Na verdade, não sabemos sequer o que somos, o quanto essa medida significa, sequer procuramos saber. Talvez, porque somos apenas desconhecidos que se reconhecem, encontram por acaso, embalados por vontades submersas que não se questionam, de serem elas mesmas as respostas às perguntas que não fazemos, que não importam existir.

Às vezes, dizes-me que vens e faltas. És assim, imprevisível, natural. Tenho tudo preparado para receber-te e não apareces. Então, fico uma eternidade, um dia inteiro de espaço e de tempo sentada à mesa do chá com os braços apoiados, as mãos abertas, os olhos vagueados sobre o terraço – ora fixos no relevo dos dragões na louça, ora distantes sobre o mar, ora fechados e voltados para dentro a vaguear a alma pelas frases – as minhas frases dentro do teu sentido genuíno, deslizado de pele sobre o tampo.

Somos sempre e antes de tudo a verdade que pensamos – disseste-me um dia, ou disse-me alguém ou de alguém alguma frase. 

Às vezes, de tanto esperar, os dragões na porcelana mexem-se e falam a minha boca calada de ondulações no teu nome. Outras vezes, desaparecem por instantes dos olhos para dar lugar ao teu rosto no vidro. Então, deixo de pensar no tempo que demoras e penso em ti. Sabes que te perdoo sempre que dizes que vens e faltas. Também tu me perdoas quando sou eu a falhar-te, a não atender-te a porta. Sabes que não o faço por vingança, não querer que venhas.

Como entendo e aceito as tuas inopinadas aparições, entendes e desculpas o meu inopinado humor que me leva a fugir-te.

Chegas e finjo-me ausente,  quieta e calada por detrás da porta a escutar-te o corpo dependurado em água, a tua respiração salgada e profunda, os teus passos parados que ao fim de segundos percebem a minha arrelia e desistem – rodam o corpo e recuam o caminho das escadas numa cascata apressada. E eu corro no mesmo tempo o caminho do terraço, a procurar-te, a querer espreitar-te, ajoelhada na sombra da cadeira de verga – a atravessares a rua, a caminhares pela areia, a chegares-te à água, a torceres o corpo salgado num aceno. Não te distingo os olhos mas sei que estão postos em mim – que te despedes antes de avançares e mergulhares nas ondas, desapareceres desfeito em espuma.

E eu choro a falta do sal da tua pele que parte.

Há muito que deixaste  a cidade, este caminho. Estavas  farto dos nomes – disseste-o -, das pessoas dos nomes, das coisas dos nomes, de ti mesmo e do nome que tinhas, de mim e do meu nome. Da explicação dos nomes. Estavas farto de tudo e farto de estar farto. Esfalfado deste movimento continuo. Agora, tudo é para ti outra coisa que sabes e que eu desconheço, outra espécie de reincidência, porque nos limites, tudo acaba por circular a origem e a alma.

Vou-me embora –  o dia chegou em que disseste e foste. Acreditei que era para casa e fiquei debruçada no terraço a ver-te atravessar a rua – tu, que continuaste pela areia, entrastes no mar e desapareceste. Quis que parasses, chamar-te, mas a minha voz emudeceu e o meu pensamento contrariou os sentidos, os gestos que quiseram correr mas permaneceram quedos.

Espera – teria dito -, também vou.

Um dia destes, apareço – disseram por ti as ondas – prometo.

E foi essa frase uma promessa demorada a parecer infinita – um tempo disperso pelo terraço desarrumado de olhos, vazio e mar. E foram as noites longas a pensar em ti, frio e morto no fundo do mar, regelado. Em ti  prostrado ao meu lado no espaço vazio da cama, findo, ressuscitado – ora molhado sobre mim, ora quente. Tu, imaginado no meu quarto submerso na profundidade aquática, na minha profundidade íntima, no meu leito, fundo. Tu, mergulhado a seres  o que sempre desejaste, o que consegui imaginar para ti e querias que fosse – a liberdade dos nomes, do jugo do corpo esperado de nós.

Muitas vezes fechei os olhos e desloquei-me no sono para conseguir ver-te melhor, escutar dentro do meu silêncio o teu pensamento revelado.

Um dia destes  -, da tua boca arroxeada e quieta.

Quando? -, eu  a nadar uma parede do quarto, a deslizar pelo teto a pergunta, a flutuar sobre a mobília, a ver-te deitado ao meu lado – nós os dois colados de olhos postos no gesso. Os pensamentos a tremer as teias no tempo de outro sono. Tu a tremeres dentro de mim a minha insónia.

Quarta-feira – a tua cara de peixe na resposta, na minha cabeça respirada de água -, apareço para um chá no terraço.

E quarta-feira transformou-se no dia mais indubitável da semana. O dia com o nome mais fervoroso. Feliz, varri e varri, e varri, porque gosto de ti e de varrer. Arrumei tudo muito bem como era suposto. Esperei. E acreditei mesmo que viesses – tanto, que não deixaste de aparecer.  E foi essa a quarta-feira mais perfeita dentro do nome e do mês. E tu, a promessa mais verdadeira e nua dentro de mim.

Nesse dia, escancarei a porta da entrada para que quando chegasses não tivesses de esperar. Alinhei o tapete azul junto à soleira. E  foram primeiro as ondas que se fizeram escutar, como se o mar de repente tivesse galgado as margens, atravessado a rua e inundado tudo, subido as escadas de passos até à minha porta, roçado a minha pele e perfurado a carne e percorrido o meu sangue. Tu, dentro de mim como um rio, a zoada de um búzio gigante a sibilar na minha cabeça. E tudo no tempo do meu desejo, o tempo do mar acoplado no meu peito, os teus passos quedos de areia enterrados no corpo à minha frente.

Entra – e puxei-te dependurado na âncora da minha mão. Arrastei-te dentro e fora de mim, pesado como um barco atolado na margem. E os teus pés rastejados e envolvidos de areia, submersos de água, sargaços e peixes, invadiram as divisões e foram alagando tudo em direção ao terraço. E o mar eclodiu na minha casa e a minha casa submergiu no oceano. Os peixes a nadaram todos os recantos, a mergulharam os armários, as gavetas, as jarras nos móveis, os reflexos nos espelhos. A flutuaram em círculos os candeeiros.

Fiz bolinhos – disse, e fui buscar.

E o chá estava frio a saber a iodo, os bolinhos a limo. E os dragões que eram de jade, nadaram da porcelana e fugiram. 

E o terraço era um banco de coral.

E tu eras um peixe.

Afinal, éramos da água os mesmos.

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