muro

Além, naquela direção, depois de todo este castanho, esta barrigada de terra revolvida, estes socalcos, pedras, poeira, carnação e suor – no limite do chão, no cabeço do morro, mesmo por debaixo do cerúleo céu -, fica o muro. O inevitável e incontornável muro – língua pálida e fria, esticada e áspera, visguenta como a dor pregada ao chão, o peso da culpa, o medo da razão, a asfixia somática da vida. Uma inderrubável divisa feita de pedras caiadas, duras, encasteladas – todas elas estorcegadas, encastoadas, sufocadas; todas elas soltas, porém indissociáveis. São assim as pedras do muro, como as que crescem atadas à alma dos homens crescidos. As pedras que enrijecem o ódio, acorcovadas às irresoluções amarelecidas, à revolta, à passividade, à vingança, ao incontável tempo, ao espaço que atravessa a história como uma zagaia sobre a permanência.

O muro cresce firme na medida da pequenez dos homens crescidos. O muro é mais alto quanto menor for a convicção – mais alto, mais largo, com os alicerces mais fundos. O muro eleva-se e afunda-se a prumo. Um dia, vai crescer tanto que vai laminar o céu, enterrar-se no mundo, fragmentar a existência em dois firmamentos, dois universos. Vão acontecer duas vidas em dois espaços e dois tempos iguais. Dois deuses, duas castas, dois destinos.

O muro é mais baixo que uma criança, porém mais alto que três homens juntos, corpulentos, sobrepostos. É seguro e alongado – inabalável como a linha do horizonte.

Também existe um rio – o único. O rio, é a única realidade que viaja aqui – leva o vento, arrasta o pó, dilui o sonho deste lugar para fora – arrasta-o até ao desconhecido, ao infinito em que se quer acreditar. Estreito, atravessa vertiginoso a planície árida, como se fugisse, como se temesse – exaltado, arrebatado, repentino, efémero pretendesse escapar à inépcia dos homens grandes, ao bulício -, aspirasse mormente fazer-se entendido.

O rio é tão comprido e misterioso como o muro – talvez mais. Dele, emergem crianças em dias de luar, quando os homens grandes estão distraídos, sentados sobre pedregulhos a revolver torrões em busca de respostas soterradas. Emergem da água remexida. Elevam-se de geiseres luminosos. De mãos atadas, avançam sobre a superfície turbulenta em direção à margem – as mãos a chapinhar na espuma, os cabelos a esvoaçar na brisa como seda prateada. Enterram os pés no lodo da margem, despidas como abetos diáfanos que desenraizados avançam sobre a aridez da terra.

As crianças, sabem tudo sobre a vida, a simplicidade, o fundamental. Sabem tudo sobre os homens grandes – que têm as almas fechadas, envelhecidas e tristes. As crianças saem do rio e avançam luminosas como a Lua, como a dança, como a poesia, como a música sobre o peso do mutismo, do terreno infértil do abatimento. Delicadas como as folhas que às vezes se soltam das copas das árvores que existem por detrás do muro branco, que livres esvoaçam, balançam, deslizam pelo ar em direção ao desejo dos que correm a apanhá-las -, as crianças prosseguem. Por segundos, os homens largam as mãos da terra, os utensílios, os intuitos, largam tudo e esquecem-se uns dos outros, do que fazem, de quem são – param e sorriem, balançam o olhar pelos gestos harmoniosos e ternurentos, as palavras simples e doces das crianças que chegam do rio. Sorriem-lhes como néscios defronte de preciosidades – pueris, por instantes cândidos. Passam-lhes as mãos grossas e bruscas pelos cabelos macios, pela pele aveludada como o vento, a força da água enrolada na concha de uma mão. E repetem os gestos e os pensamentos embevecidos, até ficarem sonolentos, adormecerem e acordarem já com o Sol prostrado sobre a planície seca, a luz a incidir sobre a parede branca no cume do outeiro despojado. Têm novamente os olhos revirados e raiados de sangue, a razão turva.

Os homens grandes estão muitas horas de pé sobre a terra, hirtos e determinados. Eles sabem tudo sobre tudo o que querem saber. Que o muro nasce longe no horizonte – onde parece mais achatado e estrangulado, onde nasce o Sol – que cresce com a proximidade e volta a minguar no sentido do ocidente, como um escapelo entalhado entre o céu e a terra. Que o rio acontece e não pode travar-se. Que as crianças chegam com o luar e partem com o nascer do dia – chegam com o sonho e partem com a realidade. Que o muro divide os mundos – separa-os acima do solo e debaixo do oceano. Que por detrás da parede encastelada reside outra existência que querem conhecer. È para lá que querem ir. Sabem isso quando fixam a atenção no cocuruto da parede gigante, nas copas  agitadas das árvores que sacodem as cabeleiras sobre a parede, soltam folhas, pétalas, perfumes inebriantes – espontaneidade.

As crianças que levitam do rio, recolhem ao rio antes do Sol nascer, os homens grandes despertarem sobre a terra – zangados, empedernidos e cegos. Apressadas, constroem jangadas com raízes que enlaçam com tranças de cabelo – e partem. Não se despendem – simplesmente vão –, abraçadas umas nas outras, sobre as jangadas que deslizam à velocidade da pressa. Rio abaixo, afastam-se como libelinhas coloridas, aranhiços flutuantes, até perderem de vista a terra, o muro, os homens grandes esquecidos das noites de luar – esteios ressequidos enterrados no lodo.

Quando o rio se cansa, abranda e se espraia, a água é uma lagoa e a viagem termina. As crianças saltam alvoroçadas e estremunhadas das jangadas. Esfregam os olhos porque há mais luz e estavam habituadas ao luar. Admiram-se – há árvores, flores e pássaros por todo o lado. Não existem homens grandes ali. Sorriem. Cantam e espreguiçam os corpos  pelo mundo novo. Estão felizes, tranquilas, livres  – por enquanto.

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